Hawk: Um encantado da margem

Felipe Angiolucci
5 min readDec 19, 2018

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Imagine que você decide produzir videos para o Youtube. Um vlog, da sua vida. O que você precisa? Você decide assistir outros vlogs e descobre a estrutura mínima: Um conteúdo que interesse as pessoas e saber como conta-lo. Uma mínima qualidade de gravação. Uma linguagem dinâmica, de cortes rápidos numa câmera estável num tripé. O que você faz então? Um vídeo sobre seu amigo falando uma história confusa sobre o café da tia enquanto faz nuggets, em que você quase nunca aparece, numa câmera boa mas que balança o tempo todo e as vezes não filma o que está acontecendo, não foca direito e as vezes estoura a luz. Parabéns, você acabou de criar um dos canais mais incríveis do Youtube, o HawkShow

O que é Hawk?

É um canal incrível. Basicamente a gente assiste alguns momentos da vida de Hawk e Galego, que são, na maioria das vezes banais. Não tem nada de extraordinário nos acontecimentos em si. Mas o poder desses videos está muito mais no formato dele, no jeito de contar histórias e na visão de mundo que eles carregam. Quero explorar um pouco disso pensando onde reside o fascínio de ver videos de dois marmanjos subindo uma laje e achar incrível.

Os videos tem um humor que conversa muito com o nonsense. Quem me indicou ele (obrigado Natalia) fez enquanto falávamos da TV Quase, o grupo de humor mais interessante no Brasil, que também caminha muito com o nonsense (menos no mais famoso deles, o Choque de Cultura, e mais nos outros, como Ultimo Programa do Mundo, Decimo andar, Irmão do Jorel). Mas não é só isso. O poder dos vídeos está no fato dele ser marginal e assumir isso. Marginal no sentido de estar à margem do mundo e não no seu centro. Uma marginalidade espacial, estética e social.

Hawk na Margem

De vermelho a enorme cidadezinha de Ipiaú

Margem espacial. Só pelo fato dos videos serem gravados no Brasil, uma das margens do mundo capitalista financeiro industrializado, já está a margem de outras produções. Mas pensando no cenário nacional, os videos são gravados na pequena Ipiaú, cidade que nunca tinha ouvido falar antes mas que hoje em dia tenho vontade de conhecer. Ela fica no interior da Bahia. Não bastava ser no nordeste, não bastava ser na Bahia, os videos são de uma cidade de 47 mil habitantes. Está fora do eixo da produção audiovisual, que se concentra entre Rio e São Paulo, mas também está em toda região sul e sudeste no geral. Está

Um belo enquadramento da parede

Margem estética. Como disse mais acima, os vídeos não seguem o padrão de vlog no Youtube. Câmera estável num quarto, onde a pessoa muito bem iluminada e foca fala da sua vida. O Hawk faz os videos que são “errados”. Muitas vezes não mostra o que tem que mostrar, balança muito, fica desfocado. Mas isso é incrivel. Ele simplesmente aceita que é assim que consegue ver seu vídeo e cria a tudo a partir disso. A edição também não tem aquela pressa, de cortar e cortar e cortar todas as falas, pra encurtar o vídeo. Eles seguem um ritmo próprio. Isso inclui também o conteúdo, que, num primeiro momento, pouco me importa. Mas do jeito que é contado, seu modo de se por no mundo, se torna uma das coisas mais interessantes que já vi, mesmo que o assunto seja desodorante, suco de melancia ou surf, assim como o modo de falar, com suas construções de frase e girias. Se o Youtube criou um modo de fazer video, o Hawk jogou no ralo e fez o modo dele.

Pivete na pose

Margem social. Eu demorei alguns videos para me tocar que o Hawk era deficiente físico. Isso porque, em vários videos, isso não é mostrado ou é uma questão. Na verdade em quase nenhum video isso é uma questão, somente quando ele decide falar disso deliberadamente. O fato dele andar de muletas está diretamente ligado a sua estética, afinal não deve ser nenhum um pouco facil fazer tudo ao mesmo tempo.

Mas além disso, acredito que o fato de ser deficiente, socialmente falando, o coloque numa posição à margem da sociedade, na figura de incapaz, de coitado. E o que ele mostra nos vídeos é exatamente o oposto. Ele faz suas coisas sem problemas. Talvez faça um pouco diferente, mas ele faz e aceita isso, o que reflete em seus vídeos e em sua estética.

Esse é o poder do Hawk. Ele não é apenas diferente, ele é ele próprio. Tem uma identidade. Não é cópia. Fala por si só. Ele, de uma maneira ou de outra, aceita e usa a seu favor o fato de não estar no centro. E isso me faz pensar em Guimarães Rosa..

As Gerais

Ouvi dizer que para Guimarães Rosa o nome “Minas Gerais” tem uma contradição e uma síntese do Brasil. Isso porque “Minas” se refere às riquezas e tesouros extraídos daquela terra na empresa colonial da coroa. Um local diretamente ligado ao litoral, as capitais do sudeste, os locais de importância e decisão no Brasil. Local onde se concentrou através dos tempos as elites econômicas e intelectuais. Enquanto isso Gerais, se refere a parte do estado mais ao norte, que se liga ao nordeste e ao centro-oeste. As terras pouco conhecidas e pouco habitadas, sem os tesouros a serem explorados. Terras que o Estado não alcança. O sertão, longe do litoral, onde, não concentra, mas se espalha a pobreza e o pouco estudo, o trabalho laboral. Uma contradição que atravessa o Brasil, assim como o Rio São Francisco, o rio que representa o portal entre esses mundos. Só que, Guimarães Rosa vai além dessa visão simplista do sertão. Para ele, esse lugar é rico, maravilhoso e encantando. Tem seu brilho próprio, onde as coisas não são e nem funcionam como imaginam o litoral e sua intelectualidade.

Hawk, um dos insanos ipauienses, é exatamente a expressão disso. Ele não está no centro, na capital, onde é produzido o mais alto do audiovisual. E isso não é desvantagem pra ele, é o seu grande trunfo. Hawk é um encantado do sertão brasileiro, que nos agracia com seus vídeos toda semana. Uma originalidade dificil de encontrar na internet e na vida, cada vez memetizada. Se tu ta lendo isso pivete, continua fazendo seu trabalho que você é di fudê. Não importa o projeto que você entre, vou te acompanhar.

Esse é barril

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